
E então a mesinha de centro saiu do centro, graças a um ato de coragem da mulher! Ao chegar em casa em dia de jogo, via sempre seu marido com mais dois amigos atirados no sofá, cabeças nas almofadas e pés na mesa. Não havia, de fato, mais serventia para a tal mesa no centro da sala, a não ser estampar marcas de copos de cerveja e de chutes - estes dados a cada impedimento marcado nos jogos de futebol da TV.
- O que houve? – fala ela em tom baixo.
- Cara de pau...comprado! Deu impedimento...imbecil...
Mas ele não estava falando com ela, precisamente, e sim com uma entidade masculina personificada em sua mente. Ela não entenderia a fúria dele devido ao impedimento. Pior! Ela não entenderia um impedimento!
- Tu não precisava chutar a mesinha...
- Eu não chutei! Olha lá aquele maldito...é muito ruim este cara, muito ruim...como é que um incompetente desses pode apitar...!
- Sim, tu chutou...
- Tá, agora não quero falar da mesinha, pode ser?
- (...) Por isso eu queria colocar ela no canto... (ainda em tom baixo...e sério)
- ... (fingiu que não ouviu!)
Mas pensou: por que ela não pode simplesmente ficar quieta na hora do jogo? Por que tem que ficar falando, cobrando, não consegue prestar a atenção?! Antes o Marcão e o Souza pudessem ter se livrado das mulheres e vindo aqui para ver este jogo comigo...
- Ta lá...goooool! FDP...eu sabia que esse cara tinha estrela...sabia!
- No último jogo eu ouvi vocês xingando ele...é o mesmo?
- Xingando não...ele tava podre mesmo, lesionado, não estava rendendo tudo o que podia...
- Ah...
Ele pensou, de novo, pois não ousaria falar nada para ela enquanto aquele “Ah” estivesse no ar: - Meus Deus, que memória de elefante...tudo bem que eu xinguei o Ganso, mas ele mereceu naquela partida e...ah, droga!...por que ela não vai ao shopping com as amigas ao invés de ficar aqui fazendo estes comentários futebolísticos de mulher?
Ela também pensou, pois sabia que falar com ele naquele momento seria o mesmo que falar com uma porta: - Que droga este pé dele na minha mesa. Como é que não se dá conta que está marcando tudo, que fica feio. Não adianta falar! Como vou trazer visitas aqui com esta mesa horrorosa na sala? As gurias até já perceberam que estava feia. Que teimoso!
Naquela noite dormiram de bunda. Sabe quando um casal não está totalmente brigado, mas dorme de bunda? Pois é. Ele lá, para o seu lado, sem saber direito por que ela estava braba. Ela, para o lado oposto, indignada com a preocupação dele pela posição do time no tal Brasileirão e pelos jogos da série A, B, C...fosse lá o que isso fosse! Além disso, o Marcão e o Souza estavam sempre enraizados no sofá da sala quando ela chegava do trabalho nas quartas de noite. E o Zeca? O Zeca não estava nem aí para a sua mesinha. Tomou uma decisão! Tirou sozinha a mesa do centro. Mas não sem protestos...
- Por que a mesinha não está aqui? Por que tirar ela daqui agora?
- Por que vocês iam demolir com ela...
- Mas onde vou colocar os copos de cerveja?
- Não sei...
- E o Marcão? Ele assiste sempre com o pé aqui em cima e tem dado sorte ultimamente...
Ela pensou: - O que há entre os homens e o futebol que faz eles ficarem assim, insanos? E lá o pé sujo do Marcão dá sorte para alguma coisa neste mundo? Meu Deus! Além disso, a expressão de abandono do Zeca, em função da retirada de uma mísera mesa, era digna de drama mexicano!
- Eu vou por de volta tá? Depois a gente vê como faz...hoje é jogo importante...
- Faz como tu quiser, eu vou sair com a Ana. Ela disse que precisa comprar uma mesa de centro porque no último jogo o Marcão demoliu a deles. Deu um chute, talvez pensando que era a bola...
- Vou por de volta no Centro...tá bom?
- ...
- Tá? Vou colocar! Depois a gente vê...
Parecia criança, dizendo ‘tá bom mãe? Vou por ali, tá? Depois eu arrumo tudinho de novo!’. Na verdade, ele tinha um certo temor quando ela não respondia nem braba e nem mansa...xingamentos eram sempre menos ameaçadores do que um silêncio em forma de descaso. Nestas situações o ditado era invertido – depois da calmaria, a tempestade! Ah, mas também não queria ficar pensando naquele assunto em dia de jogo! No universo masculino a melhor coisa para esquecer um problema é não lembrar que ele existe.
Ela, ao contrário, recorreu à Ana, pois no universo feminino os problemas se cultivam, em busca de significados ocultos:
- O Zeca tá demolindo minha mesa de centro...
- Da última vez que eu tive na tua casa vi que ela estava meio frouxa quando fui apoiar o prato de sobremesa...o que ele fez?
- Eles vão para lá ver futebol e chutam a pobre mesa como se fosse a bola, a cabeça do juiz, é patético!
- Eu já proibi o Marcão de assistir jogos lá em casa. Ele agora disse que vai na casa de um amigo...mas ele detonou minhas almofadas de ficar puxando os fios de linha e tirando as miçangas ao longo do jogo...
- Sim, ele agora vai lá para casa assistir com o Zeca...
- Ah éééé? Ele não me disse que ia pro Zeca...
- O Zeca tem todos os pay-per-view de futebol que existem. E ai de mim se implicar com isso! Pode ser motivo de separação, acho até que está no contrato de união estável!
- Homem é bicho engraçado...
- É que a mesa tem um simbolismo né, Ana?
- Sim claro, tem toda história do dia em que vocês ganharam e tal...parece que ele nem percebe isso...
- Claro! Foi o primeiro móvel da nossa casa quando a casa sequer existia. Eu adorava aquela mesa, queria muito comprar, mas ele não se decidia para ir morar junto, lembra? Daí minha mãe achou que dando uma mesa ele poderia sentir uma certa pressão sutil...e ela sabia que ele tinha paixão por mesas de centro, então era uma forma de agradar e ao mesmo tempo dizer ‘vamos lá, vamos nos mexer?’.
- É...ele tinha uma certa alergia a casar, mas o Marcão também. Tinha aquele monte de amigos solteiros dizendo: “bah véio, vai te prender, vai abrir mão da tua liberdade...comigo isso aí de casar não cola não...vou aproveitar a solteirice e tu devia fazer o mesmo...”
- É, ele foi enrolando até onde deu...teve a crise na bolsa, a gripe do frango, a fome na África...
- E a mesa ajudou?
-Um pouco...como eu não tinha espaço para guardar disse que teríamos que deixar no apartamento dele, que na época era de um quarto...a mesa ocupava toda a sala praticamente.
- Boa essa...
- Mas ele destroçou a coitada agora. Ela só serve para empilhar pé sujo e copo de cerveja...
- Eu sei, te entendo! É como se a mesa fosse uma representação de uma parte do relacionamento de vocês...ele nem dando bola e tu querendo arrumar...
Era tão legal sair com a Ana! Ela era psicóloga e sempre tinha esses lances esquisitos de ver mil significados nas coisas, mas entendia perfeitamente os sentimentos do mundo feminino...talvez mais por ser mulher do que por ser psicóloga...
- Sim...e ele não entende...
- Eu sei amiga, eu sei...
- Mas agora resolvi ficar quieta...deixa ele se dar conta sozinho...
De volta ao doce (agora mais para azedo) lar:
- Oi...
- E ai amorzinho! Tudo bem?
- É...
- (Ele beija estalado a testa dela) Timão ganhou paixão...ganhou!
- Ah...(Ele realmente achava que ela ficaria feliz com aquela informação?)
- ...mas...que cara é essa?
- Nada...
- Hum...mas tu tá com um jeito estranho...
- Nada, deixa...
- Tu tá com bico...
- Bico eu? Para Zeca, vai lá ver o retrospecto dos gols e os comentários finais vai...
- Hum...
E nessa noite dormiram de bunda de novo! No dia seguinte ela foi trabalhar achando que o casamento estava em crise, porque ele não falava nada...sequer insistiu em saber o que ela tinha. Não pensava na mesa, não pensava nela, não pensava no que era importante para ela. Ana era a única que entendia isso. Ficou sem almoçar, pensando que a coisa era muito mais séria que um pé em cima de uma mesa. Passou em retrospecto toda a relação nos últimos tempos em comparação com o início e fez várias constatações que iam ao encontro de suas hipóteses. Sim! O Zeca não estava mais nem aí para a relação, para as coisas de valor do seu amor! Tanto que perguntou só uma vez como ela estava...e nem foi bem uma pergunta, pois já veio dizendo que ela estava bicuda! Era só o que faltava...não conseguiu perceber a sua parte no “bico” dela? Como era insensível!
- Oi...como foi o dia negrinha?
- Bem. (seca, áspera, dura...odiava aquele jeito dele de ‘nada está acontecendo, negrinha’).
Ele sabia que não podia ficar muito em silêncio, mas não conseguiu pensar algo a tempo de evitar a frase que seguiu da sua boca bicuda...ela atacou:
- Precisamos conversar...
Ele no fundo sabia que ia sobrar para cima dele. Aquele bico todo, era tudo muito suspeito.
- Tem que ser agora?
- Sim né Zeca? (soltando fogo pelas ventas, e o bico aumentando – é possível constatar que o bico está para as mulheres assim como o nariz está para Pinóquio).
- Mas o que houve?
- Tudo Zeca...houve tudo! Tu nem dá mais bola para nossa relação, tu trata a mesa de centro como tu trata a mim...com descaso...
Ele sabia! Ele sabia que aquele começo não era nada promissor e que não conseguiria levantar do sofá antes de, no mínimo, uns 45 minutos. Se tivesse antevisto isso poderia ao menos ter feito xixi.
Ela seguiu em seu discurso-reclamação-choramingo e ele ali intacto, sem mexer um dedo, sem coçar o nariz. Está certo que ela começou a chorar uma hora, ele nem conseguia mais entender o que ela dizia ou onde estava querendo chegar, mas na hora do choro queria mais era sair correndo. Lembra apenas de ter ouvido o final:
- ...e tu não quer tirar a mesa de centro do centro! (em gritos lacrimejantes).
Ele não sabia muito o que falar, pois não tinha conseguido acompanhar o raciocínio simbólico até o fim, embora tivesse até certa curiosidade em saber de onde brotavam tantas idéias estapafúrdias de mesas simbolizando relacionamentos, mas pensou melhor e resolveu dizer só “Tá bem querida, eu tiro. Não precisa ficar assim...”
Parece que depois houve um abraço, mais uns resmungos dela, umas palavras de alento dele, alguns beijos. Ele tirou a mesa do centro, arrumou outro lugar para por os copos de cerveja em dia de jogo, mas nunca entendeu a história do relacionamento deles e a mesa de centro. Ela gostou dos carinhos dele e achou ele mais atencioso depois, comentando com a Ana que achava que ele tinha percebido, de fato, que a relação estava ruim e estava se esforçando para mudar. Naquela noite ele viu o futebol e parece que não dormiram de bunda! Mas que às vezes eles se achavam mutamente insanos, Ah! ...isso era verdade!